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segunda-feira, 13 de maio de 2013

Exumação faz São Borja reviver o mito de Jango

A Fronteira gaúcha, de tantas paixões e mistérios, discute desde a semana passada uma questão que emergiu das brumas do passado. De que, afinal, morreu João Goulart, o são-borjense que foi ministro, presidente da República, acabou deposto num golpe militar e faleceu no exílio, voltando ao Brasil só depois de morto? Assassinado? Ou doente, vítima de seu coração fraco e de sua mágoa pelas amarguras do desterro?
Entre os jovens conterrâneos que acompanham política e já ouviram falar desse fazendeiro-ícone da esquerda brasileira, é grande o ceticismo. A hipótese de morte premeditada soa como mirabolante a muitos deles, uma verdadeira teoria da conspiração. Ela pode ser confirmada (ou desmentida) a partir da exumação do corpo de Jango, decidida pelo governo brasileiro na semana passada e prevista para ocorrer ainda este ano.
Já entre os velhos campeiros fronteiriços, gente que conviveu com Jango nas estâncias e comícios, que contrabandeou dinheiro para ele sobreviver no Uruguai e Argentina, é enorme a convicção de que o líder civil deposto pelos militares foi morto num complô armado pelas Forças Armadas dos países do Cone Sul.
É o caso dos amigos Luthero Fagundes e Artur Dornelles, que conviveram com Jango nas horas boas e difíceis. Luthero, que tem 88 anos e foi contador e administrador dos bens do ex-presidente, é janguista, mas não é brizolista – acha que Leonel Brizola, cunhado de Jango, contribuiu com extremismos para que seus desafetos criassem condições de um golpe militar. Já Dornelles, 74 anos, tem a parede da sala decorada com retratos de Jango (em maior número) e Brizola, a quem também admirava. Chegou a montar uma espécie de relicário só com fotos do ex-presidente.
Pois mesmo com essa ligeira divergência quanto aos rumos do trabalhismo, a dupla comunga da mesma crença: militares uruguaios, argentinos e brasileiros se uniram para neutralizar as lideranças civis da América do Sul.

Mortes de JK e Lacerda alimentam suspeitas

Luthero lembra que Jango morreu em dezembro de 1976, supostamente de ataque cardíaco, no mesmo ano em que militares derrubaram a presidente argentina Isabelita Perón. Em agosto daquele ano, morreu num acidente misterioso o ex-presidente brasileiro Juscelino Kubitschek. Em março de 1977, morreu Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, de problemas no coração, como Jango. Os três ex-mandatários tinham superado divergências e criado uma Frente Ampla propondo a restauração do regime democrático no Brasil.
— Não existe coincidência nesse desaparecimento de presidentes. Os militares argentinos estiveram no hotel Alvear, centro de Buenos Aires, em novembro de 76 e avisaram ao Jango, que morava ali: o senhor tem de ir embora. Ele não obedeceu e morreu um mês depois — sentencia Luthero, que levava dinheiro e documentos a Jango na Argentina.
Luthero e Dornelles lembram que os janguistas eram vigiados em tudo: casamentos, batizados, no serviço. Por isso, cultivam uma suspeita avassaladora, o assassinato — mesmo passados 36 anos da morte que comoveu o Brasil e deu a São Borja um dos maiores funerais da sua história.

Umidade pode ter prejudicado

— Recordo como se fosse hoje. Eu, guri de 14 anos, empoleirado numa árvore para ver o caixão do Jango desfilar, num cortejo que dava três voltas no cemitério — descreve o vereador Eldomir Marchezan, do PR de São Borja, que tenta aprovar um projeto encarregando o Exército de guarnecer o túmulo de João Goulart contra saques.
Eldomir, 50 anos, é dos que têm muitas dúvidas. Para ele, assassinato é apenas uma possibilidade. Afinal, Jango era chegado numa carne gorda e num uísque, já tivera infarto.
A secretária municipal de Turismo de São Borja, Leocádia Guerreiro, também não tem convicções firmadas. Está sob sua jurisdição o Museu João Goulart, criado na casa onde Jango viveu e que recebe em média 600 visitantes por mês. Gente que vem de lugares distantes como Goiás ou Argentina e se delicia com a profusão de fotos, roupas e adornos do ex-presidente expostos nas paredes do casarão no centro da cidade fronteiriça:
— Não tenho opinião formada, mas, para acabar a dúvida, só exumando.
Exames é o que defende um dos netos mais atuantes de Jango, Christopher Goulart, suplente de vereador pelo PDT em Porto Alegre:
— Indícios de envenenamento existem, mas não sabemos se há condições de provar assassinato.
A exumação vai ocorrer no Cemitério Jardim da Paz, construído sobre um antigo banhado - o que, talvez, prejudique a coleta de provas, já que infiltrações podem ter ocorrido por baixo da sepultura. O corpo de João Goulart está no jazigo construído por seu pai, o "coronel" Vicente Goulart. Ali também estão os restos mortais da irmã de Jango, Neusa, e do cunhado, o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. Flores murchas emolduram o túmulo, deixadas por uma legião de fãs que teima em não desaparecer.

A versão do espião uruguaio

A tese de que Jango foi assassinado ganhou força quando um ex-espião do governo militar uruguaio, Mário Neira Barreiro, gravou depoimentos afirmando isso. Ele foi preso em Porto Alegre, por assalto a banco e tráfico de armas.
Sob o codinome Tenente Tamuz, Neira integrou o grupo Gama, unidade paramilitar de apoio ao serviço de inteligência uruguaio. Ele afirma ter vigiado 24 horas por dia Jango, de 1973 até o dia da sua morte. Disse isso em depoimentos a comissões parlamentares e em entrevistas.
Neira nega ter assassinado Jango, mas afirma que seus colegas o fizeram. Teriam colocado um produto que causa hipertensão em meio ao frasco de vasodilatadores que Jango tomava para prevenir infarto. As pílulas da morte seriam comprimidos de potássio e um cloreto desidratado num esterilizador. A mistura teria sido feita por um médico no hotel em que Jango morava, de tal forma que provocou o infarto fatal. Esse médico teria sido morto pelos militares, como queima de arquivo. Neira diz que o assassinato foi tramado pelo temido delegado Sérgio Fleury, do Dops de São Paulo.
Neira cumpriu pena e, desde janeiro, está em liberdade condicional, residindo em Gravataí. A Comissão da Verdade tenta localizá-lo, para ser ouvido mais uma vez.

ENTREVISTA - Odil Rubim Pereira, médico que preparou o cadáver de Jango para o funeral

“O presidente temia muito um atentado”

Um forte calor emanava do Rio Uruguai naquele 7 de dezembro de 1976, sufocando São Borja, quando o médico Odil Rubim Pereira foi chamado pelo telefone para uma missão delicada. Foi de supetão, como é usual no seu ofício, que soube da morte do conterrâneo e amigo João Goulart. O duro é que foi convocado para preparar o corpo para o funeral, já que era necessário aguardar a chegada dos filhos de Jango, João Vicente e Denize, que estavam na Europa.
Passadas mais de três décadas, Odil, 68 anos, relata aqui sua triste missão e conta que ouviu da própria boca de Jango: ele temia ser assassinado. Confira a entrevista, feita sexta-feira no consultório do médico, no centro de São Borja:

Zero Hora – De onde o senhor conhecia o Jango?
Odil Rubim Pereira – Meu pai tinha propriedade vizinha à dele, partilhava das ideias dele. Cansei de ver o Jango lidando no gado, junto com os peões. Quando adulto, ganhei coragem e pedi emprego. Com auxílio dele, fui nomeado para a Caixa Econômica Federal. Quando fazia exames médicos, veio o golpe de 64 e perdi o serviço, a nomeação foi anulada. Mas a amizade continuou. Visitei ele algumas vezes no Uruguai.

ZH – Como foi no dia do sepultamento?
Odil – Apesar de ginecologista, fui chamado, porque a família exigia um médico conhecido e de confiança. Fui. Coloquei algodões e gaze nos orifícios, o que retardou um pouco o processo de deterioração, o suficiente para a chegada dos filhos do Jango. Não tenho condições de dizer se havia algo anormal no corpo. Ele foi sepultado dois dias após a morte.

ZH – O senhor acha que a exumação do corpo pode revelar algum envenenamento?
Odil – Minha esperança é de que essas gazes e algodões que coloquei ali contenham algum material para exame genético. Quanto ao veneno, depende do tipo. Alguns não deixam rastro possível de detecção.

ZH – Qual sua opinião? Jango foi assassinado?
Odil – Acho bem provável. O clima era de paranoia, endurecimento das ditaduras. Em 1969, visitei Jango em Montevidéu. O presidente me disse que temia muito um atentado, contra ele e contra Brizola. Achou que o golpe fosse momentâneo, mas, naquela visita, se mostrou convencido de que essa gente de farda chegara para ficar muito tempo. E ficaram.
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